sexta-feira, 11 de setembro de 2009

"And I don't want the world to see me, 'cause I don't think they'd understand
When everything's made to be broken...I just want you to know who I am"


Lillian O'Neil
Memphis, Tenessee. 22 de Outubro de 2003

       
Os corredores do Instituto para Reabilitação Mental Charles O’Neil eram muito similares a um labirinto. Brancos e iluminados por uma forte luz artificial. Nenhum deles possuía janela, e o número de portas era praticamente o mesmo. Algum visitante comum poderia se perder facilmente por aqueles corredores, vindo até a entrar em alguma sala que não deveria.
        Mas os detentos do Instituto O’Neil não recebiam visitas. Eram criminosos em sua maioria, e estavam internados por terem sido pegos cometendo crimes hediondos. Não sairiam até que estivessem cem por cento curados.
        Havia uma espécie de escala naquele lugar. Os criminosos mais perigosos se encontravam alguns andares abaixo da terra, em celas de vidro temperado. Os corredores do setor G eram menos iluminados dos que os acima.
        Conforme evoluísse em seu tratamento, o preso subiria para uma cela, no andar acima do qual se encontrava. Quando chegasse ao Setor A e evoluísse, era considerado completamente curado, e poderia sair do Instituto.
        Apenas uma pessoa havia saído daquela instituição, vários anos antes. Seu nome era Drew, mas ninguém sabia seu sobrenome.
        Uma garota andava por estes corredores, na manhã do dia 22 de Outubro. Na televisão, o repórter local havia dito que fazia sol, mas a menina não poderia olhar pela janela – Não haviam janelas no Instituto O’Neil -, de modo que ela apenas acreditava veemente no possível dia ensolarado que se estendia por fora daquelas paredes brancas.
        Ela sacudiu seus cabelos compridos por sobre as costas. A cor dos fios, lisos e compridos, variava de um para o outro, oscilando entre dourado e prata. A garota acomodou por sobre um de seus braços uma bandeja de metal, e alisou a mão livre por sobre sua saia de algodão, toda rodada.
        O corredor chegou então ao fim, e ela se viu diante de uma porta grande de metal, na qual estava impressa, em enormes letras negras, a seguinte identificação:
        Setor G – Apenas funcionários
        Quando ela inseriu quatro dígitos em um monitor digital, sem sequer prestar atenção nos números que apertava, a pesada porta de metal deslizou horizontalmente, com um ruído seco. O corredor que se estendia diante dela era um pouco menos iluminado e possuía dez celas distribuídas igualmente pelas duas extremidades de sua extensão.
        Ao passar pelo primeiro par de celas, viu que Ronald Ullman dormia angelicalmente em posição fetal. Era um garoto de pouco mais de vinte e quatro anos, com os cabelos louros, oleosos e o nariz adunco. Tinha olhos incrivelmente gentis e adorava palhaços. Vestia-se como um para matar crianças.
        Uma voz rascante vinda da cela oposta à de Ronald Ullman atraiu a atenção da menina. Era James – Jimmy – Harris, com seus cabelos grisalhos, penteados para trás e seu sorriso extremamente branco e malicioso. James havia feito a Lillian uma proposta indecente, sobre algo que poderiam fazer mais tarde, se ela se disponibilizasse.
        A frase saída dos lábios de Jimmy Harris não somente parecia algo que Ronald Ullman diria – e não aquele senhor simpático e fino, residente da cela 01 –, como também faria com que qualquer garota corasse furiosamente, e continuasse seu caminho pelo corredor, fingindo que não havia escutado.
        Mas ele havia dito aquilo à Lillian O’Neil, e ela não era uma garota qualquer.
        - Se você repetir isto, Jimmy, creio que vou ter que mandar com que cortem algo seu fora... Surpreender-se-ia caso visse partes suas lhe encarando do prato de jantar?
        Recebeu como resposta uma risada.
        - Está de bom humor hoje, Lilly.
        - Sim, estou. – ela sorriu em resposta. James reparou, sem nenhuma surpresa, que seus olhos não sorriam. Eles jamais haviam sorrido para alguém.
        - Está indo ver Edgard?
        Ela fitou o senhor por alguns instantes e continuou andando pelo corredor, os sapatos estalando pelo piso de concreto. Não fosse por sua confissão, Lillian nunca acreditaria que Jimmy Harris havia estuprado e assassinado mais de vinte mulheres. Parecia gentil demais para algo assim.
        As celas 03 e 04 eram ocupadas respectivamente por um alemão com nome impronunciável, e Bill Biruta. O primeiro deles estava naquela cela há mais de oito anos, e não sairia mais enquanto vivesse; havia matado sua mãe em um acesso de fúria, e a comeu para encobrir o crime. Usando como tempero apenas um pouco de pimenta malagueta.
        - Lillian – ele pronunciou com seu inconfundível sotaque, acenando com uma de suas mãos. A menina ao corredor procurou fazer o mesmo, e fitou demoradamente o livro que ele estava lendo. Seu título estava em alemão, mas era inconfundível a cruz imensa que havia em sua capa de couro. Era a Bíblia Sagrada.
        Olhando para o outro lado, ela pôde ver um homem magricela, apoiando-se sobre os próprios joelhos e fitando uma foto arrancada de revista. Como se estivesse diante de um espelho, Bill Biruta começou a pentear seus cacheados e vermelhos cabelos.
        - Como vai, Billy?
        Ele ergueu os olhos para ela, parecendo momentaneamente atordoado. Em seguida abriu um sorriso torto, com dentes amarelos. Lilly pôde perceber que ele cantarolava uma música pra si mesmo; reconheceu-a momentos depois como uma música de ninar alemã que o homem da cela à frente havia ensinado a todos em certa ocasião, com lágrimas nos olhos por se lembrar que sua mãe cantava esta música.
        Apenas Bill Biruta a aprendera de verdade.
        Seus passos soaram novamente pelo corredor, e pararam mais uma vez diante das celas 05 e 06. A primeira delas estava completamente vazia, exibindo apenas suas paredes brancas e nuas, iluminadas de modo fraco pela luz do corredor. Na outra cela, um homem gritava odiosamente deitado ao chão na mesma posição em que Ronald Ullman dormia algumas celas antes.
        - Bom te ver também, Mike... – ela murmurou casualmente, fitando as costas nuas do homem na cela, que sangravam. Mike Stuart tinha grandes problemas mentais, assim como Bill Biruta, mas estava mais inclinado à auto-multilação que o outro.
        As marcas sangrentas em suas costas foram feitas por suas próprias unhas.
        Outra coisa que Mike tinha em comum com Bill era quanto aos crimes que havia cometido sem ter plena consciência disto. Os dois utilizavam armas parecidas – Mike usava uma machadinha, e Bill usou um cutelo em cinco de seus assassinatos – e tinham uma doentia preferência por garotos de cinco a nove anos.
        As celas 07 e 08 eram as únicas que abrigava mulheres, no setor G. Na primeira delas, Jessica Carolyn fumava um cigarro de canela acoplado em uma longa piteira negra. Ela ergueu seus grandes e maquiados olhos para a garota do corredor, e abriu um sorriso.
        - Bon Jour, Lilly querrida. – murmurou dando uma breve tragada, e assoprando uma fumaça branca e com cheiro de canela no vidro à sua frente.
        - Bon Jour, Cherry.
        Jessica tinha um sério problema com personalidades. Tinha quatro diagnosticadas como: Cherry LaPoue, a prostituta francesa que matara oito de seus trinta e um amantes; Greta Jacobowitz, a russa que havia martelado uma criança de dois anos na cabeça; Elizabeth Cook, uma inglesa boêmia que – aparentemente – parecia a mais inofensiva de todas as personalidades daquela mulher e por fim a própria Jéssica Carolyn, uma menina nascida em Houston, Texas, que havia baleado dois de seus vizinhos, sem qualquer motivo aparente.
        A cela oposta à de Jessica Carolyn era foco de gritos, como a de Mike. Nela, uma mulher baixa e rechonchuda se contorcia em um dos cantos escuros, agarrada a um trapo sujo e úmido. Seu nome era Anna Graham.
        - Você! – ela urrou, arrastando-se em direção ao vidro que a separava do corredor. Apontava seu dedo sujo para Lillian – Você tirou minha filha de mim! Eu quero minha filha de volta!
        Sem responder-lhe, e acenando rapidamente com a cabeça, a garota do corredor retomou seus passos para o fim do corredor. O som oco de seus sapatos contra o piso de concreto praticamente não era ouvido, abafado pelos gritos furiosos de Anna.
        - Eu vou lhe matar, garota! Eu vou matar todos vocês! Guardem minhas palavras. Eu vou vingar-me cruelmente do dia em que fizeram com que meu bebê se separasse de mim – ela balbuciava, torcendo o pano sujo por entre as mãos. Filetes finos de sangue escorriam de suas palmas brancas.
        Anna Graham nunca tivera filho sequer.
        - Mon Dieu, alguém cale a boca desta garrota! - Jessica murmurou, apagando seu cigarro no chão, e colocando suas duas mãos delicadas contra os ouvidos.
        Lillian ignorou o fato de que o corredor havia se tornado incrivelmente barulhento, com todos os presos gritando, cantando mais alto – no caso de Bill – ou reclamando – como os outros. Ela desviou sua atenção para uma porta que havia a sua frente. Tão grande e pesada quanto aquela que adornava a entrada do Setor G. Mas nesta, estava escrito com as mesmas letras grandes:
        Solitária. Mantenha Distância.
        Segurando sempre a leve bandeja de prata em uma das mãos, Lillian estendeu a outra lentamente e sem hesitar, e girou a maçaneta de prata defronte a si.
        Quando ela deu o primeiro passo para dentro do quarto escuro que a aguardava, percebeu que todos no corredor haviam se calado de súbito, e fitavam-na curiosos, esperando seu próximo movimento.
        Antes que qualquer um pudesse dizer algo, ela entrou no quarto, sendo envolta pela escuridão, e fechou a porta atrás de si.
        - Você não deveria estar aqui! – ela ouviu uma voz com um quase que imperceptível timbre de medo. A escuridão agora não era completa, haviam alguns pontos de luz na sala, como cinco computadores pequenos sobre uma escrivaninha, cada um mostrando um canto qualquer de outra sala.
        Havia também uma janela de aproximadamente quatro metros quadrados, da qual era possível a vista para uma outra sala. Uma sala branca, e tão iluminada quanto os corredores dos setores acima.
        Ao fundo da sala, havia um rapaz pálido, e de aparência cansada.
        Edgard.
        - Meu pai quer vê-lo – a menina retirou os olhos do rapaz ao longe, que fitava algum ponto fixo em suas próprias mãos, e olhou para o segurança gordo a seu lado. O dono da voz com timbre de medo.
        - S-sr. O’Neill?
        Lillian arqueou as sobrancelhas.
        - Creio que ele seja meu pai.
        - E-eu não deveria deixar este posto... E-eu...
        - E foi por isto que ele me mandou, Michael...
        - Chad – ele corrigiu timidamente.
        - Chad... Foi o que eu disse. Ele quer te ver neste exato momento. E se eu fosse você, não o deixaria esperando. Papai detesta esperar por alguém.
        Sem dizer mais nada, Chad deu meia volta e correu desajeitadamente até a porta. Hesitou brevemente antes de abrir a porta, mas por fim irrompeu pelo corredor mal-iluminado, no qual estava reinando um silêncio quase que fúnebre.
        - Hora de ver meu querido Ed. – Lillian murmurou para si mesma, indo até a porta pela qual o policial gordo havia acabado de passar. Trancou-a com um breve estalido, e virou-se para a sala escura na qual estava.
        Silenciosamente, sem nem pensar no que esta sua inocente mentira poderia trazer como conseqüências, a menina desligou um a um dos cinco computadores que filmavam ângulos diferentes de Edgard Wilson – dezoito anos, diagnosticado com distúrbio psicótico de personalidade. Alto, musculoso, de olhos escuros e inescrutáveis, e cabelos que caíam em ondas por sobre suas sobrancelhas arqueadas.
        A menina ajeitou seus cabelos e passou as mãos por sua saia, em uma tentativa de se arrumar. E então, foi até uma porta que a separava da solitária, e a abriu.


_______________________________________________



        O quarto no qual Edgard Wilson passara sua última semana era amplo e branco. Tinha as paredes e o chão almofadados, como se ele estivesse no interior de uma nuvem. Mas era somente isto. Ele tinha direito a duas refeições por dia, e uma ida ao banheiro.
        Tudo isto apenas por que ele resolvera brincar um pouco com o rosto de uma de suas enfermeiras, Beverly; O estilete deslizara como uma faca quente na manteiga.
        - Está frio aqui, quer que eu peça a papai para aumentar o aquecedor, Ed? – Lillian perguntou sorridente, enquanto fechava a porta atrás de si. Edgard franziu o cenho para a garota, enquanto ela andava cuidadosamente por sobre as almofadas fofas que se erguiam do chão, em direção a ele.
        - O que você quer, Lilly?
        - Não seja rude assim, Ed – ela murmurou, enquanto se ajoelhava no chão. Fitou a camisa de força, que segurava os braços do rapaz rentes ao corpo, desenhando um X. – Eu vim em paz.
        Ele continuou fitando-a, com seus olhos negros inescrutáveis. Viu quando ela enfiou a mão em um bolso que havia na saia, e tirou de lá uma chave grande e velha. Lillian estendeu a chave para o peito de Edgard, colocando-a em um fecho enferrujado.
        Quando ela girou a chave para a direita, o rapaz sentiu as correias se afrouxando de seus braços. Sentiu-os pendendo lentamente por sobre o peito, enquanto podia novamente movimentar seus ombros.
        - Bem melhor, não é? – ela sorriu, guardando a chave novamente.
        Lillian levantou-se e andou alguns passos para trás, a fim de contemplar enquanto Edgard se soltava lentamente de seu casulo.
        - Por que está aqui?
        - Eu vim trazer-lhe os remédios – ela sorriu novamente, enquanto se abaixava em direção à bandeja de prata que havia ficado rente a seus pés. Ele a fitou, enquanto esfregava seus pulsos lentamente, tentando normalizar sua circulação sanguínea.
        - Se fosse apenas para isto – Edgard deu alguns passos em direção à menina, que se erguia com dois comprimidos coloridos na palma da mão – Teriam mandado alguma enfermeira.
        - Você preferiria alguma delas aqui, neste exato momento, batendo papo com você? Ao invés de mim? – Ela se abaixou novamente, agora para pegar um copo descartável com água.
        - Sim, eu preferiria.
        Edgard se surpreendeu sinceramente, quando Lillian começou a rir baixinho, enquanto se punha de pé de novo, com o copo em uma das mãos, e os dois comprimidos na outra.
        - Eu fiquei sabendo... Que elas estão com medo de você. – uma pausa na qual um pôde ouvir a respiração do outro – Pelo ao menos depois de que você se divertiu, retalhando o rosto de Beverly.
        - Como ela está?
        - Se recuperando... Fisicamente, claro, porque o psicológico daquela garota nunca mais será o mesmo. – Mais uma pausa entrecortada por respirações – Você sabia, Ed, que os médicos mal conseguiram reconstruir o rosto de Bev?
        Nesta pausa, só se ouviu a respiração de Lillian, pois o rapaz à sua frente havia segurado a sua.
        - Você é muito habilidoso... Com estiletes.
        - Você disse – ele a interrompeu – Que elas têm medo de vir aqui... E quanto a você? Não tem medo?
        Lillian se permitiu sorrir novamente.
        - Eu sei cuidar de mim mesma. E não sou uma completa idiota. Não tem nenhum material nesta sala com o qual você possa me ferir.
        Ele deu mais alguns passos em direção a ela. Sentiu seu peito encostar no dela lentamente, e sentiu a pele da garota eriçar, quando tocou em seu rosto, descendo até a região do pescoço.
        Edgard a tocou lentamente, deslizando um de seus polegares por toda a extensão do pescoço dela, e parando sugestivamente pouco acima do decote de sua blusa. Pensou em como aquele conjunto de ossos – e a vida daquela menina – pareciam frágeis por entre seus dedos fortes, que poderiam se fechar a qualquer momento, quebrando-lhe o pescoço.
        - Você sabe que eu não preciso de nenhum material, para lhe ferir...
        - Você não fará nada comigo. – ela sussurrou.
        - Não? E por quê?
        - Porque você gosta de minha companhia. E é por isso também que prefere quando as enfermeiras vêm lhe trazer um remédio. Você detesta pensar na possibilidade de que realmente gosta de alguém, que não seja a si mesmo. Te faz sentir quase... Humano, não é?
        Edgard soltou Lillian subitamente. Os olhos negros afiados como navalhas.
        - O que você quer?
        - Você sabe o que eu quero.
        - Ah, vamos, Lilly. Eu não estou no humor... – ele murmurou, passando as mãos por sobre os olhos, e indo até o canto onde estava, momentos antes.
        - Por favor, Eddie! Não vai doer... Eu lhe prometo.
        - Você sempre diz isto.
        - Por favor. Eu dobro sua dose de remédios.
        O rapaz hesitou. Afundou o rosto em suas mãos, pensativo, e por um instante ocorreu na mente de Lillian que ele lhe negaria. Mas antes que ela pudesse dizer algo, ou até mesmo protestar, ele ergueu seus olhos cansados, e se levantou.
        Edgard murmurou algo integligível antes de retirar sua blusa branca, exibindo seu corpo definido e repleto de cicatrizes, que se espalhavam por suas costas, braços e peito. Pareciam tatuagens feitas por uma criança de cinco anos. Flores, estrelas, rostos felizes ou tristes, e até mesmo algo que parecia uma rena. Lillian fitou por alguns instantes as dezenas de cicatrizes, e então se lembrou: Bill Biruta adorava renas.
        - Obrigada – ela sussurrou ao pé do ouvido dele. Sentiu os pêlos do rapaz se arrepiarem no peito nu, quando ela deslizou ambas as mãos abertas, lentamente por seu corpo.
        Lillian enfiou a mão no bolso de sua saia mais uma vez, e retirou de lá um pequeno canivete negro. Olhou para a lâmina uma vez, e em seguida fitou os olhos sérios e escuros de Ed.
        Foi quando ela o cortou, lentamente, do lado esquerdo do peito. Em forma de coração.
        - O que você acha? – ela perguntou, fitando o desajeitado coração como Picasso olharia para Guernica, logo após pintá-la. O rapaz baixou os olhos para o coração sangrento em seu peito.
        A dor não lhe afetava.
        - Eu realmente acho que há algo por trás de todo este seu sadismo com sangue. Algo que eu ainda preciso descobrir.
        - Boa sorte quanto a isto. – ela respondeu de modo seco, enquanto limpava o sangue de Edgard na ponta de sua blusa pólo branca. Com um movimento rápido, fechou o canivete e guardou-o novamente no bolso da saia.
        - Por que você não me diz nada sobre si?
        - Olha só, Ed, o tempo voa quando você está comigo. Mas agora eu tenho que ir embora... Não se preocupe, eu volto. Talvez amanhã, depois quem sabe. Apenas espere por mim. – ela murmurou rapidamente, dando meia volta e começando a caminhar por sobre as proeminências acolchoadas do chão.
        Parou quando sentiu a mão de Edgard segurando com força em seu braço.
        - Você sempre faz isto, não é? – ele resmungou, de um modo incrivelmente agressivo, que excitou a garota - Faz o que bem entende comigo e depois sai... Sem explicação, sem me deixar entender o que raios você é. Sabe o que eu acho, Lilly? Que você tem medo de perceber que gosta de mim tanto quanto aparenta. De se sentir, como você mesma disse... Humana?
        Tão repentinamente quanto a havia segurado, Edgard soltou o braço dela.
        Lillian deixou suas mãos penderem ao lado do corpo suavemente, enquanto fitava Edgard, sem saber ao certo o que fazer. Ela passou os olhos rapidamente pelos olhos escuros do rapaz, seguindo por seu peito ensangüentado. Olhou então para sua própria blusa, com algumas gotículas de sangue espalhadas, e depois para os pêlos eriçados de seu braço, próximos ao local que Edgard havia segurado com tanta agressividade.
        Ele se virou para a parede, passando as duas mãos pelos cabelos e fechando os olhos. Era isto, agora ela iria embora como se nada houvesse acontecido, voltaria provavelmente umas duas semanas depois, para fazer outro desenho em sua pele.
        - Meu nome... – Lillian murmurou, fazendo com que ele se sobressaltasse com o simples fato de que ela estava ainda na sala. Ela respirou fundo antes de continuar – É Lillian O’Neil. Tenho quinze anos e nunca beijei nenhum garoto. Nasci nesta droga de prédio, que é o lugar que eu mais odeio em todo mundo. Não me lembro de ver a luz do sol, isto porque eu matei meu irmão pequeno, quando tinha quatro anos. O sufoquei com um travesseiro, porque ele não parava de chorar. Meus pais me levaram no psiquiatra, e eles me diagnosticaram com transtorno sociopata de comportamento.
        Uma pausa.
        - Na verdade – Lillian continuou, deixando escapar um breve risinho – Eu acho que aqueles desgraçados quiseram ferrar com minha vida, porque eu disse que iria matar cada um deles. Eu não me lembro de minha mãe, nunca recebi um abraço verdadeiro de meu pai, não me lembro de como o céu é, nunca fui a um shopping, uma escola ou a um cinema. E eu odeio a todos neste mundo pequeno, Ed. Com a possível exceção de você.
        Houve um silêncio longo, no qual Lillian prendeu a respiração, ouvindo apenas a de Edgard, enquanto acompanhava com o olhar o peito do rapaz, que se movimentava lentamente.
        - Agora você sabe tudo sobre mim. Desculpe-me se não posso me dar ao luxo de ser mais interessante. – ela acrescentou, sentindo que suas mãos tremiam.
        Ele também percebeu isto. Andou lentamente em direção à garota, parecendo levar uma eternidade para terminar os cinco passos que os deixaram frente a frente. Tomou-lhe as mãos trêmulas da garota nas dele, e sorriu. Seu peito ensangüentado agora tocava no dela, manchando sua blusa branca.
        - Eu lhe acho incrivelmente interessante. – ele murmurou.
        E a beijou.
        Por um instante, eram apenas os dois no planeta. Eram apenas os dois quando ele sentiu o gosto dela, e quando ela foi envolvida pelos braços fortes dele. Eram apenas os dois quando o coração sangrento do peito dele carimbava uma marca de sangue no peito dela; Outro coração.
        Eram apenas os dois, em uma sala deserta, vigiados por uma câmera desligada, sentindo que pertenciam um ao outro.

domingo, 6 de setembro de 2009

Chapter One - Scars (Luke Lewis)

"It disappeared with the same speed as the idealistic things I believed.
The optimist died inside of me."


Luke Lewis
New York, New York. 08 de Dezembro de 2003

       
O corpo de bombeiros de New York consistia em um prédio grande e vermelho, com uma imensa garagem aberta, na qual podia-se avistar as dezenas de carros de bombeiros – Como os que Luke costumava brincar quando criança. – O rapaz ia lá, todos os dias, ao voltar do mercado. Brincava com Bolton, um dálmata incrivelmente esperto, conversava com sua prima, Ginny Lewis, e dava uma bela e rápida olhada em Daniel Cowman, o chefe dos bombeiros
        - Luke – Ginny sorriu, abrindo seus braços para que o primo a pudesse abraçar. Ela tinha seus cabelos curtos, bagunçados e negros como ébano. Negros como os de Luke.
        - Bom dia. – ele respondeu
        - Como estão todos? Tio Sam, tia Lilian? A pequena Anita?
        Luke sorriu, com a imagem de sua família passando lentamente por sua cabeça. Sua mãe, Lilian Lewis, com os cabelos castanho-acobreados, compridos. Era uma mulher robusta, amável, cuidadosa. Ao contrário de seu pai, Samuel Lewis, que era alto, magro, pálido. E parecia estar sempre com sua mente em Plutão.
        Sempre o comparavam a seu pai.
        Pensou também na pequena Anita, com seus cabelos negros presos em tranças compridas caídas sobre as costas. Naquela manhã, ele a deixara dormindo, abraçada com um boneco de pelúcia, enquanto ia rapidamente ao mercado, comprar um pouco de leite para sua mãe.
        O leite matinal de Anita.
        - Estão todos ótimos.
        - Isto é muito bom! Bem, eu já imagino por quem você veio procurar. Quer que eu chame Daniel?
        - O quê? – o rapaz deixou escapar, sua voz saindo um pouco mais aguda do que ele pretendia. – Eu vim ver você, Gi.
        - Ah, claro – a garota riu, andando para o lado oposto do aposento. Luke a seguiu, com passos tímidos – E você acha que eu nasci ontem, e não percebi até hoje os seus olhares sobre meu chefe?
        - Eu olho para ele como olho para qualquer pessoa – ele respondeu baixinho, olhando para seus tênis velhos e surrados. Sentiu seu rosto esquentando, e sabia que estava ficando tão vermelho quanto aqueles carros de bombeiros que se enfileiravam próximos a ele.
        - É, Luke. Para qualquer pessoa pela qual você tenha interesse, tenho certeza. Se eu não lhe conhecesse, priminho, eu diria que você está apaixonado pelo chefe dos bombeiros. – Ginny riu.
        O rapaz se manteve em silêncio, escutando apenas os papeis entre os dedos de sua prima, fazendo barulhos secos e estalados, como as folhas no chão do Central Park, durante o outono, a serem pisoteadas casualmente por casais de namorados.
        - Luke? Você ainda está aí? - ela ergueu os olhos de um formulário amarelado, recém preenchido, e fitou os olhos opacos e vazios de seu primo – Por Deus, você é igualzinho ao tio Sammy.
        Era engraçado chamar o Sr. Lewis de Tio Sam. Fazia uma alusão à época da Segunda Guerra, na qual a imagem intimidadora do Velho Tio Sam convocava os rapazes a participarem da batalha por seu país.
Tio Sam dos Estados Unidos era completamente oposto ao Tio Sam, pai de Luke.
        - Eu não pensei que havia deixado tão visível isto – Luke murmurou timidamente.
        - Ah, pois deixou. Sempre que vocês conversam, eu vejo que você sai daqui praticamente nas nuvens, com um sorriso bobo no rosto.
        - O sorriso de papai, quando ganha uma ferramenta nova?
        - Exatamente – ela respondeu, com uma risada. – Este sorriso bobo e apaixonado. Se quer meu conselho, acho que deveria chamar ele para ir a algum lugar.
        - Não – ele exclamou, com os olhos arregalados – Ele não pode saber disto, ouviu bem, Gi? Um cara como Daniel Cowman nunca olharia para alguém como eu. Ele é mais velho, afinal de contas.
        - E daí?
        - Daí que já deve ter sua namorada, ou noiva.
        Ginny entregou-se a gargalhadas, colocando o formulário amarelo sobre uma pilha de papéis. Andou novamente para o lado oposto do local, subindo uma escada comprida, na qual jazia uma placa dizendo “Apenas Funcionários”. Luke a acompanhou com o olhar calmamente, se sentando no último degrau da escada, enquanto ouvia sua risada e seus passos, ecoando em sua mente.
        Bolton, deitado em sua cama, o fitou demoradamente, e se levantou, correndo para os braços estendidos de Luke.
        - Ah Luke – a risada de Ginny parou por alguns instantes, voltando a ecoar em seguida – Você gosta dele, e não sabe nem um pouco sobre a vida dele, não é?
        - Não enche.
        - Dan não tem noiva, ou namorada. Aliás, eu acho que ele não curte mulheres. Ou seja, você tem uma imensa chance com ele. – a cabeça de sua prima surgiu diante dele, em uma abertura no teto por onde os bombeiros desciam, em casos de emergências – E você deveria aproveitar.
        - Eu não sei o que dizer a ele, Gi. – o rapaz respondeu baixinho, acariciando a parte de trás da orelha do dálmata que estava sentado por entre suas pernas.
        - Diga o que sente.
        - Ah é? E como?
        - Não sei, se vire, garoto! – ela respondeu, sumindo com a cabeça pela abertura novamente. – Eu tenho que fazer tudo por você?
        - Seria bom.
        - Você tem que aprender a se virar sozinho. – ela murmurou, com os sapatos fazendo barulhos ocos na escada novamente. – Ou como ficará, quando eu me for?
        - Não fale isto, nem por brincadeira.
        - Estou falando sério. Você anda muito dependente. De mim, de seus pais, até mesmo da Anita. E você tem que colocar nesta sua cabecinha cheia de bosta que eles não estarão aqui para sempre.
        - Quem não estará aqui para sempre?
        Luke se virou, surpreso com a voz que acabara de escutar, ecoando pelo aposento que antes era ocupado apenas por ele e sua prima. Daniel Cowman estava na porta para a rua, recém chegado.
        Sem conseguir responder de imediato, os olhos escuros do rapaz percorreram o uniforme do chefe de bombeiros, rente a seu corpo atlético. Fitou seus cabelos, dourados e bagunçados. E fitou por fim seus olhos, que eram da cor de avelãs maduras.
        - Bom dia, Dan – Ginny murmurou, sorrindo. Luke não fez questão de olhar para a prima, mas sabia do sorriso maldoso que ela tinha em seus lábios.
        - Bom dia, Gi.
        Daniel desviou os olhos dos do adolescente sentado ao pé da escada, por um instante, olhando para Ginny. Mas logo seus olhos escuros e aquosos estavam fitando os de Luke novamente.
        O garoto se sentiu aquecido. Os olhos de Daniel eram de uma cor quente, quase como uma xícara recém preparada de chocolate derretido, pronta para ser tomada durante uma nevasca, com Anita em seu colo enrolada em um cobertor cor-de-rosa e seu gato – Freddie – deitado a seus pés. Luke sentiu seu rosto esquentar, e mais algo dentro de si esquentou. Não tinha haver com seus hormônios adolescentes e descontrolados, procurando pelo menor impulso sexual para se aflorarem. Tinha haver com um sentimento quase que adulto demais para que ele sentisse. Um sentimento avançado demais para um garoto magricela e pálido, que andava pela cidade de NY sozinho, apenas levando consigo seus tênis incrivelmente surrados. Como alguém que limpa uma janela empoeirada, para ver através, Luke teve um breve vislumbre de todos os seus sentimentos naquele momento. Incluindo-se entre eles o de
        (Amor?)
        atração para/com o bombeiro chefe Daniel Cowman, que agora estava andando lentamente em sua direção, e sentando a seu lado.
        - Se não se importam – A voz de Ginny soou distante, como um radio mal sintonizado – Eu vou atender ao telefone. Estarei de volta já já...
        Luke não havia percebido que o telefone principal da sede do corpo-de-bombeiros tocava, de modo incrivelmente estridente. Ginny olhou por um último instante para Daniel Cowman e Luke Lewis, sentados ao pé da escada, e entrou por uma porta, perdendo-se de vista.
        O telefone tocava há quanto tempo?
        - Você está com quantos anos agora, Luke?
        - Quinze anos, quase dezesseis. – Luke respondeu, se sentindo repentinamente como uma criança pequena, que informava sua idade com os meses, dias e minutos. Olhou novamente para os olhos cor-de-avelã, que o fitavam com cuidado.
        - Você cresceu muito. Lembro-me de quando éramos pequenos. Eu tinha quase sua idade, quando lhe trouxe aqui pela primeira vez, se lembra?
        “Está vendo aquilo, Luke? Um dia eu vou ser o bombeiro chefe daqui!” A voz de um Daniel Cowman de apenas quatorze anos ecoou na mente de Luke. Como ele houvesse acabado de ouvi-lo falando aquilo.
        - Eu não poderia me esquecer.
        “Sério, Danny? Você vai dirigir um daqueles?”
        - Você deve estar cheio de namoradas agora.
        Luke riu.
        - Você falou do mesmo modo que diria uma daquelas tias-avós, que vemos uma vez na vida, sabe? Aquelas que...
        - ... Tem cheiro de naftalina – o outro completou sua frase.
        - É...
        O silêncio pairou sobre os dois. Daniel pensava naqueles dias, há pouco mais de dez anos atrás, nos quais eles saíam sempre juntos, como irmãos. Ele sempre como o mais velho, protegendo Luke, amando-o.
        Amando-o.
        “Danny?”
        “Hm”
        “Eu amo você.”
        “Eu também amo você, Luke.”
        Luke, agora não tinha mais cinco anos. Tinha se tornado um adolescente, cheio de hormônios, preocupações, aborrecimentos. Mas era um adolescente irregularmente quieto, sempre em seu quarto, lendo clássicos românticos, ou assistindo a filmes na televisão. Se perguntassem a ele ‘Luke, você é solitário?’, o rapaz com certeza responderia prontamente que não. O fato é que a solidão fora sempre algo presente em sua vida. Não por culpa de alguém, mas pelo isolamento próprio ao qual Luke Lewis se confinava; Ele não tinha motivos para isto, ele sequer percebia isto. Então, se perguntassem sobre sua solidão, ele apenas pensaria sobre o assunto por cinco minutos, chegando à conclusão de que não era solitário. O fato era simplesmente que ele não conhecia outra realidade que não fosse esta, apenas ele e ele mesmo.
        - Danny? – a voz dele rasgou o silêncio, trazendo Daniel de seus pensamentos sobre dez anos atrás. A menção ao apelido de infância fez com que, aos olhos do bombeiro, o adolescente a seu lado fosse novamente a criança de cinco anos com a qual ele costumava brincar.
        - Sim.
        - Eu preciso lhe contar uma coisa. É algo que eu já devia ter lhe contado há algum tempo, mas não sabia como.
        - Diga, Luke...
        Mas ele não chegou a dizer.
        Ginny apareceu ao topo da escada, dizendo firmemente:
        - Luke, entre no carro.
        - Que brincadeira é es...? – mas o rapaz não completou sua frase, assim como não disse seus sentimentos verdadeiros para Daniel naquele momento. Luke se sentiu incapaz de prosseguir por suas palavras, pois fitou os olhos de sua prima. Neles havia expresso o mais puro terror.
        Foi quando ele percebeu que havia algo errado.
        - O que houve, Ginny?
        - Entre no carro. – ela repetiu, descendo os degraus da escada aos saltos – Você também, Daniel.
        Eles a obedeceram. Quietos, ágeis, movidos pelo terror nos olhos de Ginny Lewis. Entraram no mais próximo dos caminhões vermelhos, e a garota sentada ao volante saiu pela rua, os pneus do caminhão chiando contra o asfalto.
        - Onde? – Daniel perguntou, quando Ginny ligou as sirenes escandalosas, que piscavam por sobre o caminhão.
        - Avenida 8, número 767.
        E então Luke entendeu o horror nos olhos da prima. Como alguém, que finalmente cai em si, após anos vivendo uma mentira, ele arregalou os olhos. O vento que passava, sendo cortado pelo caminhão a alta velocidade, bagunçava seus cabelos. A voz de Luke não passou de um guincho.
        - É a minha casa...


_______________________________________________



        O cheiro de madeira queimada estava presente no ar. Luke via a cena, mas se recusava a enxergar. O que antes fora sua casa, feita completamente em madeira, belamente acabada, agora eram apenas destroços. Negros como os cabelos de todos os Lewis. Algumas labaredas ainda dançavam por sobre a madeira queimada, parecendo zombar do garoto, que ainda fitava a cena sem qualquer reação.
        Ele tinha certeza de que acordaria em seguida. Com Anita a seus pés, sorrindo e chamando-o para brincar de pique-esconde. Mas se aquilo fosse realmente um pesadelo, não seria tão real e vívido, como o calor irradiado das chamas – contidas por dezenas de bombeiros, que se acumulavam aos poucos -, ou como também as lágrimas também quentes de Ginny, que lhe encharcaram o ombro direito.
        Não seria também tão vívida a dor que ele sentira, ao pensar em Anita.
        - Luke... – Ginny gemeu, o rosto encostado no peito do primo. Estava tremendo convulsivamente, e não conseguia abraçá-lo. – Luke, eles...
        - O leite de Anita...
        - O quê? – ela ergueu seus olhos úmidos para ele. Luke fitava ao longe.
        - Diga a mamãe que eu vou voltar ao mercado, esqueci o leite.
        - Do que você está falando, Luke?
        - Do leite, Ginny, você não entendeu? Eu fui até os bombeiros para comprar leite para Anita, e eu esqueci. Mas já estarei de volta, peça a mamãe para...
        A mão da garota estalou aberta na bochecha esquerda de Luke.
        Seus olhos pareceram voltar ao foco novamente. O peito do rapaz tremeu violentamente, em sua tentativa de conter um soluço alto, que resultou em algumas lágrimas se acumulando em seus olhos.
        Não caíram naquele momento.
        - Ginny, Luke...
        Os dois viraram a cabeça rapidamente, e viram um Daniel Cowman se afastando da casa, em direção a eles. Tinha o uniforme anti-chamas sujo de carvão, e trazia em suas mãos um urso de pelúcia cor-de-rosa. Semi-intacto.
Era o urso com o qual Anita dormira abraçada. Sr Bigodes, como ela resolvera chamá-lo, havia sido designado como seu guardião naquela noite. Luke havia deixado aquele maldito urso tomando conta dela, enquanto ele apenas ia comprar o leite, e o fogo a havia consumido. Mas Sr Bigodes estava apenas com algumas partes chamuscadas.
        Apenas isto.
        E Anita? O que restara dela, se é que restara?
        - A-anita? – a boca de Luke tremeu ao falar – Anita!
        - Luke... – a voz de Ginny mais parecia uma estação de rádio mal-sintonizada, em contraste com as sirenes que ecoavam pelas ruas, somadas com o burburinho das pessoas, que se acumulavam cada vez mais – Anita se foi...
        - Não, não, não, não, não! – ele gritou, se desvencilhando dos braços da prima. Bateu com seu braço direito no peito de Daniel, e viu que ele estava se segurando para não chorar. Também conhecera Anita, também a amara.
        Pensar nela, utilizando os verbos no passado, estava se tornando doloroso para Luke, de um modo quase que físico. Sem olhar duas vezes para Daniel, a seu lado com roupa de bombeiro, ou para sua prima, do outro lado, o rapaz começou a correr.
        Foi quando Luke viu algo que o perturbou tanto, que fez com que ele parasse de súbito, caindo prostrado diante do que fora algum dia sua casa. Diante do que seria sua casa novamente, daí a alguns anos.
        Ele sequer sentiu suas mãos batendo contra o asfalto, sequer notou que o joelho direito de sua calça jeans havia rasgado, e sequer sentiu quando o sangue começou a fluir de seu joelho direito. Tinha os olhos fixos em algo – Alguém – diante de si.
        Foi quando Luke deletou este momento de sua mente. Forçou-se a esquecer o que havia visto para sempre, não importasse o quê tentasse fazê-lo lembrar.
        Para sempre durou seis anos.