domingo, 6 de setembro de 2009

Chapter One - Scars (Elsie Hewitt)

" 'Cause all of the stars are fading away. Just try not to worry, you'll see them some day
Take what you need and be on your way... Stop crying your heart out"


Elsie Hewitt
Cary, North Caroline. 12 de Fevereiro, de 2003

       O inverno em Cary era tranqüilo. A neve não se fazia sempre presente. Em lugar dos flocos gélidos vindo do céu, havia apenas o vento cortante da cidade, que passava por entre telhados e paredes das casas, em uivos baixos e lentos.
        Para Elsie Hewitt eles pareciam sussurrar.
        - Conte-me o que houve, Srta. Hewitt...
        A garota ergueu seus olhos escuros para o policial à sua frente. Ela tinha o ar latino de seu pai, misturado a algumas feições delicadas e européias de sua mãe; Com cabelos longos, incrivelmente negros e repletos de ondas que remetiam o oceano em um dia tortuoso; a garota conseguia despertar o interesse alheio, apenas por seu olhar penetrante e misterioso.
        Mas naquela noite, Elsie não queria atrair a atenção de ninguém.
        Aliás, ela estava desejando ardentemente que nunca houvesse atraído o interesse de um ser humano na face da terra sequer.
        - Srta. Hewitt... Por favor.
        Ela olhou melancolicamente para o policial Jack. Ele não fazia nem idéia de como era difícil falar. Estava muito fresco em sua memória ainda.
        - Eu estava voltando de minha aula de tênis – ela começou, vagarosamente – como faço todas as quartas. Estava distraída, cantarolando alguma música do Elton John... Não percebi que havia alguém me seguindo. Apenas soube que havia mais alguém... Quando...
        E parou. Desesperada, sem conseguir encontrar as palavras, Elsie sentia como se houvesse uma imensa bolha em seu peito. Suas palavras, suas explicações, estavam todas aprisionadas naquela bolha.
        - Quando...?
        - Eu não quero continuar com isto.
        Jack Clemence respirou profundamente, entrelaçando suas grandes mãos sobre a mesa de metal que havia entre ele e a garota machucada à sua frente. Sua esposa estava em casa, provavelmente lavando a louça do jantar que já esfriara. Ele se esforçava para entender a dificuldade da garota em processar o acontecimento, mas ainda assim, estava cansado. Havia participado de duas batidas naquela tarde, seguidas de um resgate na periferia da cidade, e agora, estava cuidando de um relato sobre o estupro que a garota a sua frente havia sofrido.
        - Escute, Elsie... – ele ergueu seus exaustos olhos verdes para a menina a sua frente. O policial Clemence era bonitão, com seus vinte e sete anos, porte atlético e olhos verdes. Fazia suspirar um bocado de garotas em Cary, que sonhavam com o dia em que seriam salvas por ele – Se você quiser sair daqui, tudo bem... Mas ele irá continuar atacando garotas.
        Ela ergueu os olhos novamente, fitando a íris verde do rapaz.
        E no instante seguinte, ele percebeu todo o sofrimento ao qual a garota estava sendo exposta. Com um breve olhar, Jack Clemence percebeu o que acabara de acontecer com Elsie Hewitt.
        Neste mesmo momento, o qual Jack sentiu na própria pele a dor e a humilhação, transmitidas pelos olhos grandes de Elsie, ela também pôde perceber algo. A garota percebeu o quão difícil para ela agora seria fitar os olhos de qualquer rapaz, sem conseguir perceber neles os olhos repletos de desprezo de seu agressor.
        Ele estaria lá, assim como estava nos olhos calmos e verdes do policial Clemence.
        - Sr. Clemence? – ela sussurrou, percebendo o quão transtornado estava o policial. Ele piscou lentamente para ela algumas vezes, não conseguindo assimilar seu próprio nome à voz calma daquela garota.
        - S-sim... Desculpe-me, Elsie.
        Ele passou as mãos pelos cabelos, percebendo que havia suado frio. Por um instante, estava tudo em sua mente, ele conseguia ver com seus próprios olhos o que havia acontecido com Elsie. Ele pôde sentir as agressões físicas que ela sofreu – as equimoses que se estendiam por seu pescoço, arroxeadas, os cortes em seus braços, enfeitados com sangue seco – pôde sentir também as outras agressões que ela havia sofrido. Aquelas que não se dava para ver, apenas para sentir queimando na alma, enquanto a lembrança lhe persegue. Ele pôde finalmente entender como ela estava.
        Naquele instante, Jack Clemence quase começou a chorar.
        - O senhor está bem?
        - Você pode me dar um minuto? – ele perguntou, com a voz embargada, recebendo um breve aceno afirmativo.
        Quando fechou a porta pesada da sala, atrás de si, ele passou as duas mãos em sua face molhada de suor. Massageou as têmporas suavemente, enquanto tentava se livrar daquele sentimento.
        - Que diabos foi aquilo, Jack?
        Abriu os olhos, para a mulher negra à sua frente. Olive Watherson, a capitã dos policiais de Cary. Uma mulher baixa, robusta, e incrivelmente observadora; estava com uma das mãos na cintura, e em seus olhos, encontrava-se a expressão de total desentendimento, perante a atitude de seu melhor policial.
        - Olive? Você está aí há quanto tempo?
        - Desde que você a trouxe, para o depoimento. – ela respondeu – E eu não vi depoimento algum, até agora.
        - Me desculpe, eu... Eu não acho que seja uma boa idéia, quero dizer, fazê-la vivenciar tudo aquilo novamente.
        - Jack, você está bem? Nós fazemos isto todos os dias, se esqueceu? Eu imagino como elas se sentem, mas é melhor para elas colocarem isto tudo para fora. Conviver calada com a dor não é muito agradável.
        - Não, Olive! – ele exclamou, caminhando ao lado, em direção a uma grande janela de vidro, pela qual ele podia ver a sala onde estava, momentos antes. Elsie ainda estava lá, olhando melancólica para seus sapatos vagabundos. Ela não podia vê-lo – Você não sabe como ela está se sentindo.
        - E você por acaso sabe, Jack?
        - Eu sei! – ele bateu as duas mãos com força no vidro diante de si. Encostou a testa suada, sentindo a superfície fria em contato com sua pele – Eu não sei explicar como, mas eu sei como ela se sente.
        - Oh Jack, por favor! – ela exclamou, colocando uma mão no ombro do homem, e virando-o para si, com uma força incrível, visando seu tamanho, e o fato de ser uma mulher. – Não me venha com esta. Você sabe que não me vale nada, sentimental deste modo.
        - Não é sentimentalismo, Olive. São os olhos dela.
        - Deixe a poesia para mais tarde. Agora nós precisamos de um depoimento. Se você fizer isto rápido, não será mais atormentado por isto, e poderá ir para casa. Tenho certeza que Clarice está lhe esperando.
        - Faz dias que ela não me espera mais.
        - Como assim?
        - Clarice não está falando comigo – ele baixou seus olhos, deixando de fitar Elsie por um breve instante – Eu acho que é o fim do nosso casamento, Olive.
        A mulher continuou fitando o colega, sem saber ao certo o que dizer. Tocou-lhe o ombro, de um modo fraternal, na falta de ações premeditadas para o momento.
        - Eu sinto muito, Jack... Realmente sinto muito.
        - É, eu também.
        - Pode ir para casa, eu peço a Gaspard para cuidar desta garota – Olive murmurou, olhando preocupada para o homem à sua frente. Não se lembrava de tê-lo visto tão melancólico, desde que presenciara o massacre de crianças que havia ocorrido em 2000.
        - Não. Eu vou ficar.
        E quando ele olhou novamente para a mesinha, ao centro da sala, na qual esperava ver Elsie Hewitt, sobressaltou-se. A garota estava diante dele. Estavam separados apenas por uma fina camada de vidro, e ela o fitava silenciosamente, estudando seus olhos verdes.
        Mas aquilo era impossível, pois de onde ela estava, não se era possível ver o exterior, onde ele estava. Do lado de dentro, a superfície do vidro que os separava era espelhada.
Elsie olhou para a feição assustada de Jack. Passeou seus olhos por seu uniforme de policial, fitando cada um de seus braços musculosos, mas voltando para seus olhos, calmos, profundos, verdes. Uma das mãos do homem tocava o vidro que o mantinha longe dela.
        Olive Watherson, que acompanhava a cena, levemente assustada, se sobressaltou quando a menina ergueu a mão, repleta de machucados, e colocou-a lentamente no mesmo lugar onde a mão de Jack estava, do outro lado do vidro.
        - Ela está te vendo? – ela perguntou, com a voz saindo um pouco mais aguda do que o pretendido.
        - Não... É impossível que ela me veja.
        - Esta é uma garota estranha.
        Sem responder sua chefe, Jack Clemence caminhou em direção à porta da sala de depoimentos. Abriu-a lentamente, vendo que a garota ainda estava de frente para o vidro – que ele viu ser realmente espelhado, como ele tinha certeza de que era –, tocando-o com uma das mãos.
        Viu o reflexo da garota acompanhar seus movimentos com o olhar, e viu a si mesmo no espelho, andando em direção à mesa central novamente.
        - Eu vou lhe contar o que houve... – ela murmurou, voltando a se sentar diante do policial Clemence.


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        A saída do Colégio Elementar de Cary sempre fora incrivelmente apinhada de alunos. E no dia 12 de Maio de 2003 não foi diferente. Centenas de adolescentes saíam da escola, correndo, alegres, como se tivessem noção da longa vida que ainda teriam pela frente, e quisessem aproveitá-la o quanto antes
        - Au Revoir, meninas – Jaime Webb, uma garota alta, com os cabelos louros platinados, e o nariz arrebitado, acenou com uma de suas mãos, enquanto segurava seus cadernos cor-de-rosa na outra, e corria em direção ao carro de sua mãe.
        - Adeus, Jaime! – uma garota, também loura, colocou uma das mãos em forma de concha próxima à sua boca, gritando para a amiga. Chamava-se Katie Stam. Ela se virou para as amigas em seguida – Vejo vocês amanhã, beijinhos.
        Katie lançou três beijos estalados no ar, andando em direção ao ônibus escolar que a deixaria em casa. Elsie Hewitt reparou, com um risinho sem graça, o quanto Katie rebolava enquanto andava, lançando sua saia listrada para os lados.
        - El? Você vai para casa a pé? – a terceira garota perguntou. Ela tinha os olhos escuros como os de Elsie, mas eles não eram grandes e amendoados, e sim puxados. A japonesa fitou a amiga por alguns instantes, antes que ela respondesse.
        - Acho que sim, Lee.
        Haviam se passado três meses desde o pesadelo. E ainda assim, Elsie acordava no meio das noites, suada e com o travesseiro molhado. Molhado pelas lágrimas que ela deixava escapar sem sequer perceber.
        Claro que Jaime, Katie, ou Lee não sabiam disto. Elsie não saberia como contar para as amigas que havia sido violentada, e que o responsável nunca havia sido pego, mesmo com as promessas de Jack Clemence de que ele estaria atrás das grades.
        Provavelmente Lee se preocuparia. Já Jamie e Katie, perguntariam se tinham alguma chance de que Elsie armasse para elas um encontro com Jack – O gostoso – Clemence, agora que ele havia se separado de vez de Clarice (não mais Clemence) Tosser.
        Ela então, deixava para as amigas pensarem que este seu jeito de ficar sempre calada, analisando a todos com seus grandes olhos, fosse uma simples timidez. Deixava que pensassem que o motivo para que ela se retraísse violentamente, toda vez que tocada por um rapaz, fosse por vergonha.
        - El...? – Lee Chang disse, parando de andar. Elsie ainda persistiu alguns passos, mergulhada demais em seus devaneios para perceber que a amiga havia parado. – Elsie?
        - Ah... Me desculpe, eu estava pensando...
        Lee começou a murmurar algumas coisas, e Elsie se viu novamente presa demais em sua própria mente, para perceber o que a amiga dizia. Apenas ouviu duas palavras, que lhe fizeram focar os olhos arregalados na amiga.
        - ... Jack Clemence.
        - Quem? – ela perguntou, bruscamente, enquanto se castigava em pensamento, por ter provavelmente dito o nome dele em voz alta, em algum de seus devaneios.
        - Jack Clemence. Não é ele, recostado naquele carro?
        Elsie seguiu o dedo de Lee, que estava estendido até a direção oposta do gramado onde elas estavam. Ela riu consigo mesma, pensando que a amiga deveria estar louca, porque era impossível que o policial Clemence estivesse ali.
        Mas era ele mesmo.
        Recostado em seu Ford novíssimo, usando uma roupa informal, que o deixava parecendo mais jovem do que quando usava sua farda de policial, ele estava com os olhos verdes pousados em Elsie.
        Pareceu sorrir quando o olhar dela se encontrou com o dele.
        - É. É Jack Clemence. – ela murmurou, andando em na direção oposta a qual deveria ir. Deixando Lee para trás, com milhares de perguntas, deixando o Colégio Elementar de Cary para trás, e indo em direção a ele.
        - Boa tarde, Elsie.
        - O que você faz aqui? – ela perguntou baixinho, desviando seus grandes olhos dos olhos verdes do rapaz.
        - Vim te ver. Já se passou três meses, não é?
        - Acho que sim.
        - E como você está?
        - Muito bem – mentiu a menina, ainda olhando para seus sapatos.
        - Você tem certeza?
        - Claro que tenho... Por que não teri...
        A frase da garota foi interrompida, por um rapaz de sua idade, que chegou próximo aos dois. Ele se chamava Isaac Harris, tinha um sorriso bonito, era capitão do time de baseball da escola, e completamente maluco com Elsie.
        - Boa tarde, El... Este é seu namorado?
        - Não, Isaac. – ela respondeu, visivelmente desconfortável.
        - Eu sou apenas um amigo. – Jack respondeu amavelmente, recostando-se em seu Ford novamente. Queria ver até onde esta cena se estenderia.
        - Hey, El... Eu poderia falar em particular com você?
        - Eu acho que não é uma boa hora, Isaac – Elsie respondeu, ainda olhando para o chão. Se erguesse os olhos, não saberia para onde desviá-los. Teria que olhar para Isaac ao falar com ele, por pura educação, mas os olhos verdes do policial Clemence a atraíam hipnoticamente.
        - Ah, vamos... Qualquer coisa que queira dizer a ela, pode dizer na minha frente – Jack Clemence murmurou, sorrindo – Não se acanhe.
        - El, por favor.
        - Isaac, eu não...
        O rapaz estendeu a mão, e tocou no braço de Elsie, segurando-o de um modo firme, mas ao mesmo tempo suave. Foi o bastante para que a garota começasse a gritar, tremendo, e levasse as duas mãos ao rosto, retraindo-se rapidamente e desvencilhando-se de Isaac Harris, com uma feição de horror percorrendo-lhe a face.
        O policial Clemence se endireitou recostado no carro, alarmado, bem a tempo de receber Elsie, que corria em direção a seus braços. Os soluços entrecortados por sua respiração ofegante, as lágrimas despencando de seus olhos.
        Isaac arregalou os olhos, fitando a garota que agora, abraçava o policial, aos prantos. Ele permaneceu por alguns minutos fitando a cena, ainda atordoado. Em seguida murmurou um simples ‘Maluca’, e foi embora para casa. Naquela noite, Isaac pretendia levar Elsie a uma festa.
        - Elsie... – Jack Clemence murmurou, passando-lhe os dedos por entre as ondas de seus cabelos. A garota ainda soluçava, com o rosto colado a seu peito. As lágrimas molhando sua camiseta branca. – Elsie... Está tudo bem...
        - Não está tudo bem – ela soluçou – Nunca esteve.


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        - Como você está agora?
        Ele recebeu um vestígio de soluço, em resposta. Estavam no carro do policial Clemence, parados à porta da casa de Elsie. Ele a havia levado para dar uma volta, com o intuito de acalmá-la. Foram até o centro da cidade, onde ele a havia pago um sorvete, enquanto tentava conversar com ela.
        Mas Elsie parecia ter se fechado em uma concha, desde que Isaac a tocara.
        - Elsie...
        - Obrigada, Sr. Clemence.
        - Já lhe disse para me chamar de Jack – ele sorriu.
        Um silêncio se instalou sobre os dois.
        - Acho melhor eu ir – ela murmurou, deslizando seus dedos até a porta do carro. Foi surpreendida pela mão de Jack Clemence, que segurou em seu braço do mesmo modo que Isaac havia feito mais cedo. Do mesmo modo que a havia feito gritar e reviver aquela cena horrível que acontecera três meses atrás.
        Mas ela não gritou. Por que não era nenhum Isaac Harris que a segurava. Era Jack Clemence, e isso era o bastante para fazer com que ela não se retraísse.
        - Acho que minha mãe deve estar me esperando, Sr. Clemenc... Jack.
        - Elsie, eu lhe toquei.
        - Sim, eu vejo.
        - E você não se retraiu, gritou, ou chorou...
        - Você quer que eu chore?
        - Não. – ele soltou o braço dela, permitindo que seus dedos deslizassem até a mão da garota. – Não quero que você chore mais. Mas por quê?
        - Por que o quê?
        - Por que eu sou o único homem que você permite o contato físico? Por que sou a única pessoa que lhe toca, sem que você se retraia, ou chore? – agora os dedos dele estavam sobre a palma da mão dela.
        - É por que... Você se preocupa comigo. Eu sei que você nunca me machucaria – ela disse, com um sorriso tímido – E também por que você não olha para mim como uma mulher.
        - Como assim?
        - Você olha pra mim como olharia para a filha de sua colega de trabalho, talvez. Como apenas uma criança indefesa, jovem demais para entender o que se passa em sua cabeça. – Elsie se permitiu uma breve pausa risonha – E você nunca me olhou como mulher, de um modo atrativo. É por isto que eu não me importo que você me toque.
        Jack Clemence continuou fitando aqueles olhos escuros, sem saber ao certo o que poderia responder naquele momento. A garota a seu lado sorriu, de um modo sincero, e segurou em sua mão ternamente.
        Em seguida, abriu a porta do carro.
        - Tchau, Jack.
        E saiu, rumando em direção a sua casa, sem olhar para trás e conferir se aqueles olhos verdes a acompanhavam. Ela sabia que sim.
        Assim como sabia que Jack se afundava no assento do carro, a frustração impressa em seu rosto. Ele colocou as duas mãos sobre os olhos, cansado demais para continuar a pensar nisto, mas envolvido demais para parar.
        Elsie sabia, principalmente, que ele não fazia idéia de que ela o permitia de tocá-la por mais um motivo. Talvez o mais importante.
        Porque ele era Jack Clemence. E só por isto.

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