sexta-feira, 11 de setembro de 2009

"And I don't want the world to see me, 'cause I don't think they'd understand
When everything's made to be broken...I just want you to know who I am"


Lillian O'Neil
Memphis, Tenessee. 22 de Outubro de 2003

       
Os corredores do Instituto para Reabilitação Mental Charles O’Neil eram muito similares a um labirinto. Brancos e iluminados por uma forte luz artificial. Nenhum deles possuía janela, e o número de portas era praticamente o mesmo. Algum visitante comum poderia se perder facilmente por aqueles corredores, vindo até a entrar em alguma sala que não deveria.
        Mas os detentos do Instituto O’Neil não recebiam visitas. Eram criminosos em sua maioria, e estavam internados por terem sido pegos cometendo crimes hediondos. Não sairiam até que estivessem cem por cento curados.
        Havia uma espécie de escala naquele lugar. Os criminosos mais perigosos se encontravam alguns andares abaixo da terra, em celas de vidro temperado. Os corredores do setor G eram menos iluminados dos que os acima.
        Conforme evoluísse em seu tratamento, o preso subiria para uma cela, no andar acima do qual se encontrava. Quando chegasse ao Setor A e evoluísse, era considerado completamente curado, e poderia sair do Instituto.
        Apenas uma pessoa havia saído daquela instituição, vários anos antes. Seu nome era Drew, mas ninguém sabia seu sobrenome.
        Uma garota andava por estes corredores, na manhã do dia 22 de Outubro. Na televisão, o repórter local havia dito que fazia sol, mas a menina não poderia olhar pela janela – Não haviam janelas no Instituto O’Neil -, de modo que ela apenas acreditava veemente no possível dia ensolarado que se estendia por fora daquelas paredes brancas.
        Ela sacudiu seus cabelos compridos por sobre as costas. A cor dos fios, lisos e compridos, variava de um para o outro, oscilando entre dourado e prata. A garota acomodou por sobre um de seus braços uma bandeja de metal, e alisou a mão livre por sobre sua saia de algodão, toda rodada.
        O corredor chegou então ao fim, e ela se viu diante de uma porta grande de metal, na qual estava impressa, em enormes letras negras, a seguinte identificação:
        Setor G – Apenas funcionários
        Quando ela inseriu quatro dígitos em um monitor digital, sem sequer prestar atenção nos números que apertava, a pesada porta de metal deslizou horizontalmente, com um ruído seco. O corredor que se estendia diante dela era um pouco menos iluminado e possuía dez celas distribuídas igualmente pelas duas extremidades de sua extensão.
        Ao passar pelo primeiro par de celas, viu que Ronald Ullman dormia angelicalmente em posição fetal. Era um garoto de pouco mais de vinte e quatro anos, com os cabelos louros, oleosos e o nariz adunco. Tinha olhos incrivelmente gentis e adorava palhaços. Vestia-se como um para matar crianças.
        Uma voz rascante vinda da cela oposta à de Ronald Ullman atraiu a atenção da menina. Era James – Jimmy – Harris, com seus cabelos grisalhos, penteados para trás e seu sorriso extremamente branco e malicioso. James havia feito a Lillian uma proposta indecente, sobre algo que poderiam fazer mais tarde, se ela se disponibilizasse.
        A frase saída dos lábios de Jimmy Harris não somente parecia algo que Ronald Ullman diria – e não aquele senhor simpático e fino, residente da cela 01 –, como também faria com que qualquer garota corasse furiosamente, e continuasse seu caminho pelo corredor, fingindo que não havia escutado.
        Mas ele havia dito aquilo à Lillian O’Neil, e ela não era uma garota qualquer.
        - Se você repetir isto, Jimmy, creio que vou ter que mandar com que cortem algo seu fora... Surpreender-se-ia caso visse partes suas lhe encarando do prato de jantar?
        Recebeu como resposta uma risada.
        - Está de bom humor hoje, Lilly.
        - Sim, estou. – ela sorriu em resposta. James reparou, sem nenhuma surpresa, que seus olhos não sorriam. Eles jamais haviam sorrido para alguém.
        - Está indo ver Edgard?
        Ela fitou o senhor por alguns instantes e continuou andando pelo corredor, os sapatos estalando pelo piso de concreto. Não fosse por sua confissão, Lillian nunca acreditaria que Jimmy Harris havia estuprado e assassinado mais de vinte mulheres. Parecia gentil demais para algo assim.
        As celas 03 e 04 eram ocupadas respectivamente por um alemão com nome impronunciável, e Bill Biruta. O primeiro deles estava naquela cela há mais de oito anos, e não sairia mais enquanto vivesse; havia matado sua mãe em um acesso de fúria, e a comeu para encobrir o crime. Usando como tempero apenas um pouco de pimenta malagueta.
        - Lillian – ele pronunciou com seu inconfundível sotaque, acenando com uma de suas mãos. A menina ao corredor procurou fazer o mesmo, e fitou demoradamente o livro que ele estava lendo. Seu título estava em alemão, mas era inconfundível a cruz imensa que havia em sua capa de couro. Era a Bíblia Sagrada.
        Olhando para o outro lado, ela pôde ver um homem magricela, apoiando-se sobre os próprios joelhos e fitando uma foto arrancada de revista. Como se estivesse diante de um espelho, Bill Biruta começou a pentear seus cacheados e vermelhos cabelos.
        - Como vai, Billy?
        Ele ergueu os olhos para ela, parecendo momentaneamente atordoado. Em seguida abriu um sorriso torto, com dentes amarelos. Lilly pôde perceber que ele cantarolava uma música pra si mesmo; reconheceu-a momentos depois como uma música de ninar alemã que o homem da cela à frente havia ensinado a todos em certa ocasião, com lágrimas nos olhos por se lembrar que sua mãe cantava esta música.
        Apenas Bill Biruta a aprendera de verdade.
        Seus passos soaram novamente pelo corredor, e pararam mais uma vez diante das celas 05 e 06. A primeira delas estava completamente vazia, exibindo apenas suas paredes brancas e nuas, iluminadas de modo fraco pela luz do corredor. Na outra cela, um homem gritava odiosamente deitado ao chão na mesma posição em que Ronald Ullman dormia algumas celas antes.
        - Bom te ver também, Mike... – ela murmurou casualmente, fitando as costas nuas do homem na cela, que sangravam. Mike Stuart tinha grandes problemas mentais, assim como Bill Biruta, mas estava mais inclinado à auto-multilação que o outro.
        As marcas sangrentas em suas costas foram feitas por suas próprias unhas.
        Outra coisa que Mike tinha em comum com Bill era quanto aos crimes que havia cometido sem ter plena consciência disto. Os dois utilizavam armas parecidas – Mike usava uma machadinha, e Bill usou um cutelo em cinco de seus assassinatos – e tinham uma doentia preferência por garotos de cinco a nove anos.
        As celas 07 e 08 eram as únicas que abrigava mulheres, no setor G. Na primeira delas, Jessica Carolyn fumava um cigarro de canela acoplado em uma longa piteira negra. Ela ergueu seus grandes e maquiados olhos para a garota do corredor, e abriu um sorriso.
        - Bon Jour, Lilly querrida. – murmurou dando uma breve tragada, e assoprando uma fumaça branca e com cheiro de canela no vidro à sua frente.
        - Bon Jour, Cherry.
        Jessica tinha um sério problema com personalidades. Tinha quatro diagnosticadas como: Cherry LaPoue, a prostituta francesa que matara oito de seus trinta e um amantes; Greta Jacobowitz, a russa que havia martelado uma criança de dois anos na cabeça; Elizabeth Cook, uma inglesa boêmia que – aparentemente – parecia a mais inofensiva de todas as personalidades daquela mulher e por fim a própria Jéssica Carolyn, uma menina nascida em Houston, Texas, que havia baleado dois de seus vizinhos, sem qualquer motivo aparente.
        A cela oposta à de Jessica Carolyn era foco de gritos, como a de Mike. Nela, uma mulher baixa e rechonchuda se contorcia em um dos cantos escuros, agarrada a um trapo sujo e úmido. Seu nome era Anna Graham.
        - Você! – ela urrou, arrastando-se em direção ao vidro que a separava do corredor. Apontava seu dedo sujo para Lillian – Você tirou minha filha de mim! Eu quero minha filha de volta!
        Sem responder-lhe, e acenando rapidamente com a cabeça, a garota do corredor retomou seus passos para o fim do corredor. O som oco de seus sapatos contra o piso de concreto praticamente não era ouvido, abafado pelos gritos furiosos de Anna.
        - Eu vou lhe matar, garota! Eu vou matar todos vocês! Guardem minhas palavras. Eu vou vingar-me cruelmente do dia em que fizeram com que meu bebê se separasse de mim – ela balbuciava, torcendo o pano sujo por entre as mãos. Filetes finos de sangue escorriam de suas palmas brancas.
        Anna Graham nunca tivera filho sequer.
        - Mon Dieu, alguém cale a boca desta garrota! - Jessica murmurou, apagando seu cigarro no chão, e colocando suas duas mãos delicadas contra os ouvidos.
        Lillian ignorou o fato de que o corredor havia se tornado incrivelmente barulhento, com todos os presos gritando, cantando mais alto – no caso de Bill – ou reclamando – como os outros. Ela desviou sua atenção para uma porta que havia a sua frente. Tão grande e pesada quanto aquela que adornava a entrada do Setor G. Mas nesta, estava escrito com as mesmas letras grandes:
        Solitária. Mantenha Distância.
        Segurando sempre a leve bandeja de prata em uma das mãos, Lillian estendeu a outra lentamente e sem hesitar, e girou a maçaneta de prata defronte a si.
        Quando ela deu o primeiro passo para dentro do quarto escuro que a aguardava, percebeu que todos no corredor haviam se calado de súbito, e fitavam-na curiosos, esperando seu próximo movimento.
        Antes que qualquer um pudesse dizer algo, ela entrou no quarto, sendo envolta pela escuridão, e fechou a porta atrás de si.
        - Você não deveria estar aqui! – ela ouviu uma voz com um quase que imperceptível timbre de medo. A escuridão agora não era completa, haviam alguns pontos de luz na sala, como cinco computadores pequenos sobre uma escrivaninha, cada um mostrando um canto qualquer de outra sala.
        Havia também uma janela de aproximadamente quatro metros quadrados, da qual era possível a vista para uma outra sala. Uma sala branca, e tão iluminada quanto os corredores dos setores acima.
        Ao fundo da sala, havia um rapaz pálido, e de aparência cansada.
        Edgard.
        - Meu pai quer vê-lo – a menina retirou os olhos do rapaz ao longe, que fitava algum ponto fixo em suas próprias mãos, e olhou para o segurança gordo a seu lado. O dono da voz com timbre de medo.
        - S-sr. O’Neill?
        Lillian arqueou as sobrancelhas.
        - Creio que ele seja meu pai.
        - E-eu não deveria deixar este posto... E-eu...
        - E foi por isto que ele me mandou, Michael...
        - Chad – ele corrigiu timidamente.
        - Chad... Foi o que eu disse. Ele quer te ver neste exato momento. E se eu fosse você, não o deixaria esperando. Papai detesta esperar por alguém.
        Sem dizer mais nada, Chad deu meia volta e correu desajeitadamente até a porta. Hesitou brevemente antes de abrir a porta, mas por fim irrompeu pelo corredor mal-iluminado, no qual estava reinando um silêncio quase que fúnebre.
        - Hora de ver meu querido Ed. – Lillian murmurou para si mesma, indo até a porta pela qual o policial gordo havia acabado de passar. Trancou-a com um breve estalido, e virou-se para a sala escura na qual estava.
        Silenciosamente, sem nem pensar no que esta sua inocente mentira poderia trazer como conseqüências, a menina desligou um a um dos cinco computadores que filmavam ângulos diferentes de Edgard Wilson – dezoito anos, diagnosticado com distúrbio psicótico de personalidade. Alto, musculoso, de olhos escuros e inescrutáveis, e cabelos que caíam em ondas por sobre suas sobrancelhas arqueadas.
        A menina ajeitou seus cabelos e passou as mãos por sua saia, em uma tentativa de se arrumar. E então, foi até uma porta que a separava da solitária, e a abriu.


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        O quarto no qual Edgard Wilson passara sua última semana era amplo e branco. Tinha as paredes e o chão almofadados, como se ele estivesse no interior de uma nuvem. Mas era somente isto. Ele tinha direito a duas refeições por dia, e uma ida ao banheiro.
        Tudo isto apenas por que ele resolvera brincar um pouco com o rosto de uma de suas enfermeiras, Beverly; O estilete deslizara como uma faca quente na manteiga.
        - Está frio aqui, quer que eu peça a papai para aumentar o aquecedor, Ed? – Lillian perguntou sorridente, enquanto fechava a porta atrás de si. Edgard franziu o cenho para a garota, enquanto ela andava cuidadosamente por sobre as almofadas fofas que se erguiam do chão, em direção a ele.
        - O que você quer, Lilly?
        - Não seja rude assim, Ed – ela murmurou, enquanto se ajoelhava no chão. Fitou a camisa de força, que segurava os braços do rapaz rentes ao corpo, desenhando um X. – Eu vim em paz.
        Ele continuou fitando-a, com seus olhos negros inescrutáveis. Viu quando ela enfiou a mão em um bolso que havia na saia, e tirou de lá uma chave grande e velha. Lillian estendeu a chave para o peito de Edgard, colocando-a em um fecho enferrujado.
        Quando ela girou a chave para a direita, o rapaz sentiu as correias se afrouxando de seus braços. Sentiu-os pendendo lentamente por sobre o peito, enquanto podia novamente movimentar seus ombros.
        - Bem melhor, não é? – ela sorriu, guardando a chave novamente.
        Lillian levantou-se e andou alguns passos para trás, a fim de contemplar enquanto Edgard se soltava lentamente de seu casulo.
        - Por que está aqui?
        - Eu vim trazer-lhe os remédios – ela sorriu novamente, enquanto se abaixava em direção à bandeja de prata que havia ficado rente a seus pés. Ele a fitou, enquanto esfregava seus pulsos lentamente, tentando normalizar sua circulação sanguínea.
        - Se fosse apenas para isto – Edgard deu alguns passos em direção à menina, que se erguia com dois comprimidos coloridos na palma da mão – Teriam mandado alguma enfermeira.
        - Você preferiria alguma delas aqui, neste exato momento, batendo papo com você? Ao invés de mim? – Ela se abaixou novamente, agora para pegar um copo descartável com água.
        - Sim, eu preferiria.
        Edgard se surpreendeu sinceramente, quando Lillian começou a rir baixinho, enquanto se punha de pé de novo, com o copo em uma das mãos, e os dois comprimidos na outra.
        - Eu fiquei sabendo... Que elas estão com medo de você. – uma pausa na qual um pôde ouvir a respiração do outro – Pelo ao menos depois de que você se divertiu, retalhando o rosto de Beverly.
        - Como ela está?
        - Se recuperando... Fisicamente, claro, porque o psicológico daquela garota nunca mais será o mesmo. – Mais uma pausa entrecortada por respirações – Você sabia, Ed, que os médicos mal conseguiram reconstruir o rosto de Bev?
        Nesta pausa, só se ouviu a respiração de Lillian, pois o rapaz à sua frente havia segurado a sua.
        - Você é muito habilidoso... Com estiletes.
        - Você disse – ele a interrompeu – Que elas têm medo de vir aqui... E quanto a você? Não tem medo?
        Lillian se permitiu sorrir novamente.
        - Eu sei cuidar de mim mesma. E não sou uma completa idiota. Não tem nenhum material nesta sala com o qual você possa me ferir.
        Ele deu mais alguns passos em direção a ela. Sentiu seu peito encostar no dela lentamente, e sentiu a pele da garota eriçar, quando tocou em seu rosto, descendo até a região do pescoço.
        Edgard a tocou lentamente, deslizando um de seus polegares por toda a extensão do pescoço dela, e parando sugestivamente pouco acima do decote de sua blusa. Pensou em como aquele conjunto de ossos – e a vida daquela menina – pareciam frágeis por entre seus dedos fortes, que poderiam se fechar a qualquer momento, quebrando-lhe o pescoço.
        - Você sabe que eu não preciso de nenhum material, para lhe ferir...
        - Você não fará nada comigo. – ela sussurrou.
        - Não? E por quê?
        - Porque você gosta de minha companhia. E é por isso também que prefere quando as enfermeiras vêm lhe trazer um remédio. Você detesta pensar na possibilidade de que realmente gosta de alguém, que não seja a si mesmo. Te faz sentir quase... Humano, não é?
        Edgard soltou Lillian subitamente. Os olhos negros afiados como navalhas.
        - O que você quer?
        - Você sabe o que eu quero.
        - Ah, vamos, Lilly. Eu não estou no humor... – ele murmurou, passando as mãos por sobre os olhos, e indo até o canto onde estava, momentos antes.
        - Por favor, Eddie! Não vai doer... Eu lhe prometo.
        - Você sempre diz isto.
        - Por favor. Eu dobro sua dose de remédios.
        O rapaz hesitou. Afundou o rosto em suas mãos, pensativo, e por um instante ocorreu na mente de Lillian que ele lhe negaria. Mas antes que ela pudesse dizer algo, ou até mesmo protestar, ele ergueu seus olhos cansados, e se levantou.
        Edgard murmurou algo integligível antes de retirar sua blusa branca, exibindo seu corpo definido e repleto de cicatrizes, que se espalhavam por suas costas, braços e peito. Pareciam tatuagens feitas por uma criança de cinco anos. Flores, estrelas, rostos felizes ou tristes, e até mesmo algo que parecia uma rena. Lillian fitou por alguns instantes as dezenas de cicatrizes, e então se lembrou: Bill Biruta adorava renas.
        - Obrigada – ela sussurrou ao pé do ouvido dele. Sentiu os pêlos do rapaz se arrepiarem no peito nu, quando ela deslizou ambas as mãos abertas, lentamente por seu corpo.
        Lillian enfiou a mão no bolso de sua saia mais uma vez, e retirou de lá um pequeno canivete negro. Olhou para a lâmina uma vez, e em seguida fitou os olhos sérios e escuros de Ed.
        Foi quando ela o cortou, lentamente, do lado esquerdo do peito. Em forma de coração.
        - O que você acha? – ela perguntou, fitando o desajeitado coração como Picasso olharia para Guernica, logo após pintá-la. O rapaz baixou os olhos para o coração sangrento em seu peito.
        A dor não lhe afetava.
        - Eu realmente acho que há algo por trás de todo este seu sadismo com sangue. Algo que eu ainda preciso descobrir.
        - Boa sorte quanto a isto. – ela respondeu de modo seco, enquanto limpava o sangue de Edgard na ponta de sua blusa pólo branca. Com um movimento rápido, fechou o canivete e guardou-o novamente no bolso da saia.
        - Por que você não me diz nada sobre si?
        - Olha só, Ed, o tempo voa quando você está comigo. Mas agora eu tenho que ir embora... Não se preocupe, eu volto. Talvez amanhã, depois quem sabe. Apenas espere por mim. – ela murmurou rapidamente, dando meia volta e começando a caminhar por sobre as proeminências acolchoadas do chão.
        Parou quando sentiu a mão de Edgard segurando com força em seu braço.
        - Você sempre faz isto, não é? – ele resmungou, de um modo incrivelmente agressivo, que excitou a garota - Faz o que bem entende comigo e depois sai... Sem explicação, sem me deixar entender o que raios você é. Sabe o que eu acho, Lilly? Que você tem medo de perceber que gosta de mim tanto quanto aparenta. De se sentir, como você mesma disse... Humana?
        Tão repentinamente quanto a havia segurado, Edgard soltou o braço dela.
        Lillian deixou suas mãos penderem ao lado do corpo suavemente, enquanto fitava Edgard, sem saber ao certo o que fazer. Ela passou os olhos rapidamente pelos olhos escuros do rapaz, seguindo por seu peito ensangüentado. Olhou então para sua própria blusa, com algumas gotículas de sangue espalhadas, e depois para os pêlos eriçados de seu braço, próximos ao local que Edgard havia segurado com tanta agressividade.
        Ele se virou para a parede, passando as duas mãos pelos cabelos e fechando os olhos. Era isto, agora ela iria embora como se nada houvesse acontecido, voltaria provavelmente umas duas semanas depois, para fazer outro desenho em sua pele.
        - Meu nome... – Lillian murmurou, fazendo com que ele se sobressaltasse com o simples fato de que ela estava ainda na sala. Ela respirou fundo antes de continuar – É Lillian O’Neil. Tenho quinze anos e nunca beijei nenhum garoto. Nasci nesta droga de prédio, que é o lugar que eu mais odeio em todo mundo. Não me lembro de ver a luz do sol, isto porque eu matei meu irmão pequeno, quando tinha quatro anos. O sufoquei com um travesseiro, porque ele não parava de chorar. Meus pais me levaram no psiquiatra, e eles me diagnosticaram com transtorno sociopata de comportamento.
        Uma pausa.
        - Na verdade – Lillian continuou, deixando escapar um breve risinho – Eu acho que aqueles desgraçados quiseram ferrar com minha vida, porque eu disse que iria matar cada um deles. Eu não me lembro de minha mãe, nunca recebi um abraço verdadeiro de meu pai, não me lembro de como o céu é, nunca fui a um shopping, uma escola ou a um cinema. E eu odeio a todos neste mundo pequeno, Ed. Com a possível exceção de você.
        Houve um silêncio longo, no qual Lillian prendeu a respiração, ouvindo apenas a de Edgard, enquanto acompanhava com o olhar o peito do rapaz, que se movimentava lentamente.
        - Agora você sabe tudo sobre mim. Desculpe-me se não posso me dar ao luxo de ser mais interessante. – ela acrescentou, sentindo que suas mãos tremiam.
        Ele também percebeu isto. Andou lentamente em direção à garota, parecendo levar uma eternidade para terminar os cinco passos que os deixaram frente a frente. Tomou-lhe as mãos trêmulas da garota nas dele, e sorriu. Seu peito ensangüentado agora tocava no dela, manchando sua blusa branca.
        - Eu lhe acho incrivelmente interessante. – ele murmurou.
        E a beijou.
        Por um instante, eram apenas os dois no planeta. Eram apenas os dois quando ele sentiu o gosto dela, e quando ela foi envolvida pelos braços fortes dele. Eram apenas os dois quando o coração sangrento do peito dele carimbava uma marca de sangue no peito dela; Outro coração.
        Eram apenas os dois, em uma sala deserta, vigiados por uma câmera desligada, sentindo que pertenciam um ao outro.

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