domingo, 6 de setembro de 2009

Chapter One - Scars (Luke Lewis)

"It disappeared with the same speed as the idealistic things I believed.
The optimist died inside of me."


Luke Lewis
New York, New York. 08 de Dezembro de 2003

       
O corpo de bombeiros de New York consistia em um prédio grande e vermelho, com uma imensa garagem aberta, na qual podia-se avistar as dezenas de carros de bombeiros – Como os que Luke costumava brincar quando criança. – O rapaz ia lá, todos os dias, ao voltar do mercado. Brincava com Bolton, um dálmata incrivelmente esperto, conversava com sua prima, Ginny Lewis, e dava uma bela e rápida olhada em Daniel Cowman, o chefe dos bombeiros
        - Luke – Ginny sorriu, abrindo seus braços para que o primo a pudesse abraçar. Ela tinha seus cabelos curtos, bagunçados e negros como ébano. Negros como os de Luke.
        - Bom dia. – ele respondeu
        - Como estão todos? Tio Sam, tia Lilian? A pequena Anita?
        Luke sorriu, com a imagem de sua família passando lentamente por sua cabeça. Sua mãe, Lilian Lewis, com os cabelos castanho-acobreados, compridos. Era uma mulher robusta, amável, cuidadosa. Ao contrário de seu pai, Samuel Lewis, que era alto, magro, pálido. E parecia estar sempre com sua mente em Plutão.
        Sempre o comparavam a seu pai.
        Pensou também na pequena Anita, com seus cabelos negros presos em tranças compridas caídas sobre as costas. Naquela manhã, ele a deixara dormindo, abraçada com um boneco de pelúcia, enquanto ia rapidamente ao mercado, comprar um pouco de leite para sua mãe.
        O leite matinal de Anita.
        - Estão todos ótimos.
        - Isto é muito bom! Bem, eu já imagino por quem você veio procurar. Quer que eu chame Daniel?
        - O quê? – o rapaz deixou escapar, sua voz saindo um pouco mais aguda do que ele pretendia. – Eu vim ver você, Gi.
        - Ah, claro – a garota riu, andando para o lado oposto do aposento. Luke a seguiu, com passos tímidos – E você acha que eu nasci ontem, e não percebi até hoje os seus olhares sobre meu chefe?
        - Eu olho para ele como olho para qualquer pessoa – ele respondeu baixinho, olhando para seus tênis velhos e surrados. Sentiu seu rosto esquentando, e sabia que estava ficando tão vermelho quanto aqueles carros de bombeiros que se enfileiravam próximos a ele.
        - É, Luke. Para qualquer pessoa pela qual você tenha interesse, tenho certeza. Se eu não lhe conhecesse, priminho, eu diria que você está apaixonado pelo chefe dos bombeiros. – Ginny riu.
        O rapaz se manteve em silêncio, escutando apenas os papeis entre os dedos de sua prima, fazendo barulhos secos e estalados, como as folhas no chão do Central Park, durante o outono, a serem pisoteadas casualmente por casais de namorados.
        - Luke? Você ainda está aí? - ela ergueu os olhos de um formulário amarelado, recém preenchido, e fitou os olhos opacos e vazios de seu primo – Por Deus, você é igualzinho ao tio Sammy.
        Era engraçado chamar o Sr. Lewis de Tio Sam. Fazia uma alusão à época da Segunda Guerra, na qual a imagem intimidadora do Velho Tio Sam convocava os rapazes a participarem da batalha por seu país.
Tio Sam dos Estados Unidos era completamente oposto ao Tio Sam, pai de Luke.
        - Eu não pensei que havia deixado tão visível isto – Luke murmurou timidamente.
        - Ah, pois deixou. Sempre que vocês conversam, eu vejo que você sai daqui praticamente nas nuvens, com um sorriso bobo no rosto.
        - O sorriso de papai, quando ganha uma ferramenta nova?
        - Exatamente – ela respondeu, com uma risada. – Este sorriso bobo e apaixonado. Se quer meu conselho, acho que deveria chamar ele para ir a algum lugar.
        - Não – ele exclamou, com os olhos arregalados – Ele não pode saber disto, ouviu bem, Gi? Um cara como Daniel Cowman nunca olharia para alguém como eu. Ele é mais velho, afinal de contas.
        - E daí?
        - Daí que já deve ter sua namorada, ou noiva.
        Ginny entregou-se a gargalhadas, colocando o formulário amarelo sobre uma pilha de papéis. Andou novamente para o lado oposto do local, subindo uma escada comprida, na qual jazia uma placa dizendo “Apenas Funcionários”. Luke a acompanhou com o olhar calmamente, se sentando no último degrau da escada, enquanto ouvia sua risada e seus passos, ecoando em sua mente.
        Bolton, deitado em sua cama, o fitou demoradamente, e se levantou, correndo para os braços estendidos de Luke.
        - Ah Luke – a risada de Ginny parou por alguns instantes, voltando a ecoar em seguida – Você gosta dele, e não sabe nem um pouco sobre a vida dele, não é?
        - Não enche.
        - Dan não tem noiva, ou namorada. Aliás, eu acho que ele não curte mulheres. Ou seja, você tem uma imensa chance com ele. – a cabeça de sua prima surgiu diante dele, em uma abertura no teto por onde os bombeiros desciam, em casos de emergências – E você deveria aproveitar.
        - Eu não sei o que dizer a ele, Gi. – o rapaz respondeu baixinho, acariciando a parte de trás da orelha do dálmata que estava sentado por entre suas pernas.
        - Diga o que sente.
        - Ah é? E como?
        - Não sei, se vire, garoto! – ela respondeu, sumindo com a cabeça pela abertura novamente. – Eu tenho que fazer tudo por você?
        - Seria bom.
        - Você tem que aprender a se virar sozinho. – ela murmurou, com os sapatos fazendo barulhos ocos na escada novamente. – Ou como ficará, quando eu me for?
        - Não fale isto, nem por brincadeira.
        - Estou falando sério. Você anda muito dependente. De mim, de seus pais, até mesmo da Anita. E você tem que colocar nesta sua cabecinha cheia de bosta que eles não estarão aqui para sempre.
        - Quem não estará aqui para sempre?
        Luke se virou, surpreso com a voz que acabara de escutar, ecoando pelo aposento que antes era ocupado apenas por ele e sua prima. Daniel Cowman estava na porta para a rua, recém chegado.
        Sem conseguir responder de imediato, os olhos escuros do rapaz percorreram o uniforme do chefe de bombeiros, rente a seu corpo atlético. Fitou seus cabelos, dourados e bagunçados. E fitou por fim seus olhos, que eram da cor de avelãs maduras.
        - Bom dia, Dan – Ginny murmurou, sorrindo. Luke não fez questão de olhar para a prima, mas sabia do sorriso maldoso que ela tinha em seus lábios.
        - Bom dia, Gi.
        Daniel desviou os olhos dos do adolescente sentado ao pé da escada, por um instante, olhando para Ginny. Mas logo seus olhos escuros e aquosos estavam fitando os de Luke novamente.
        O garoto se sentiu aquecido. Os olhos de Daniel eram de uma cor quente, quase como uma xícara recém preparada de chocolate derretido, pronta para ser tomada durante uma nevasca, com Anita em seu colo enrolada em um cobertor cor-de-rosa e seu gato – Freddie – deitado a seus pés. Luke sentiu seu rosto esquentar, e mais algo dentro de si esquentou. Não tinha haver com seus hormônios adolescentes e descontrolados, procurando pelo menor impulso sexual para se aflorarem. Tinha haver com um sentimento quase que adulto demais para que ele sentisse. Um sentimento avançado demais para um garoto magricela e pálido, que andava pela cidade de NY sozinho, apenas levando consigo seus tênis incrivelmente surrados. Como alguém que limpa uma janela empoeirada, para ver através, Luke teve um breve vislumbre de todos os seus sentimentos naquele momento. Incluindo-se entre eles o de
        (Amor?)
        atração para/com o bombeiro chefe Daniel Cowman, que agora estava andando lentamente em sua direção, e sentando a seu lado.
        - Se não se importam – A voz de Ginny soou distante, como um radio mal sintonizado – Eu vou atender ao telefone. Estarei de volta já já...
        Luke não havia percebido que o telefone principal da sede do corpo-de-bombeiros tocava, de modo incrivelmente estridente. Ginny olhou por um último instante para Daniel Cowman e Luke Lewis, sentados ao pé da escada, e entrou por uma porta, perdendo-se de vista.
        O telefone tocava há quanto tempo?
        - Você está com quantos anos agora, Luke?
        - Quinze anos, quase dezesseis. – Luke respondeu, se sentindo repentinamente como uma criança pequena, que informava sua idade com os meses, dias e minutos. Olhou novamente para os olhos cor-de-avelã, que o fitavam com cuidado.
        - Você cresceu muito. Lembro-me de quando éramos pequenos. Eu tinha quase sua idade, quando lhe trouxe aqui pela primeira vez, se lembra?
        “Está vendo aquilo, Luke? Um dia eu vou ser o bombeiro chefe daqui!” A voz de um Daniel Cowman de apenas quatorze anos ecoou na mente de Luke. Como ele houvesse acabado de ouvi-lo falando aquilo.
        - Eu não poderia me esquecer.
        “Sério, Danny? Você vai dirigir um daqueles?”
        - Você deve estar cheio de namoradas agora.
        Luke riu.
        - Você falou do mesmo modo que diria uma daquelas tias-avós, que vemos uma vez na vida, sabe? Aquelas que...
        - ... Tem cheiro de naftalina – o outro completou sua frase.
        - É...
        O silêncio pairou sobre os dois. Daniel pensava naqueles dias, há pouco mais de dez anos atrás, nos quais eles saíam sempre juntos, como irmãos. Ele sempre como o mais velho, protegendo Luke, amando-o.
        Amando-o.
        “Danny?”
        “Hm”
        “Eu amo você.”
        “Eu também amo você, Luke.”
        Luke, agora não tinha mais cinco anos. Tinha se tornado um adolescente, cheio de hormônios, preocupações, aborrecimentos. Mas era um adolescente irregularmente quieto, sempre em seu quarto, lendo clássicos românticos, ou assistindo a filmes na televisão. Se perguntassem a ele ‘Luke, você é solitário?’, o rapaz com certeza responderia prontamente que não. O fato é que a solidão fora sempre algo presente em sua vida. Não por culpa de alguém, mas pelo isolamento próprio ao qual Luke Lewis se confinava; Ele não tinha motivos para isto, ele sequer percebia isto. Então, se perguntassem sobre sua solidão, ele apenas pensaria sobre o assunto por cinco minutos, chegando à conclusão de que não era solitário. O fato era simplesmente que ele não conhecia outra realidade que não fosse esta, apenas ele e ele mesmo.
        - Danny? – a voz dele rasgou o silêncio, trazendo Daniel de seus pensamentos sobre dez anos atrás. A menção ao apelido de infância fez com que, aos olhos do bombeiro, o adolescente a seu lado fosse novamente a criança de cinco anos com a qual ele costumava brincar.
        - Sim.
        - Eu preciso lhe contar uma coisa. É algo que eu já devia ter lhe contado há algum tempo, mas não sabia como.
        - Diga, Luke...
        Mas ele não chegou a dizer.
        Ginny apareceu ao topo da escada, dizendo firmemente:
        - Luke, entre no carro.
        - Que brincadeira é es...? – mas o rapaz não completou sua frase, assim como não disse seus sentimentos verdadeiros para Daniel naquele momento. Luke se sentiu incapaz de prosseguir por suas palavras, pois fitou os olhos de sua prima. Neles havia expresso o mais puro terror.
        Foi quando ele percebeu que havia algo errado.
        - O que houve, Ginny?
        - Entre no carro. – ela repetiu, descendo os degraus da escada aos saltos – Você também, Daniel.
        Eles a obedeceram. Quietos, ágeis, movidos pelo terror nos olhos de Ginny Lewis. Entraram no mais próximo dos caminhões vermelhos, e a garota sentada ao volante saiu pela rua, os pneus do caminhão chiando contra o asfalto.
        - Onde? – Daniel perguntou, quando Ginny ligou as sirenes escandalosas, que piscavam por sobre o caminhão.
        - Avenida 8, número 767.
        E então Luke entendeu o horror nos olhos da prima. Como alguém, que finalmente cai em si, após anos vivendo uma mentira, ele arregalou os olhos. O vento que passava, sendo cortado pelo caminhão a alta velocidade, bagunçava seus cabelos. A voz de Luke não passou de um guincho.
        - É a minha casa...


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        O cheiro de madeira queimada estava presente no ar. Luke via a cena, mas se recusava a enxergar. O que antes fora sua casa, feita completamente em madeira, belamente acabada, agora eram apenas destroços. Negros como os cabelos de todos os Lewis. Algumas labaredas ainda dançavam por sobre a madeira queimada, parecendo zombar do garoto, que ainda fitava a cena sem qualquer reação.
        Ele tinha certeza de que acordaria em seguida. Com Anita a seus pés, sorrindo e chamando-o para brincar de pique-esconde. Mas se aquilo fosse realmente um pesadelo, não seria tão real e vívido, como o calor irradiado das chamas – contidas por dezenas de bombeiros, que se acumulavam aos poucos -, ou como também as lágrimas também quentes de Ginny, que lhe encharcaram o ombro direito.
        Não seria também tão vívida a dor que ele sentira, ao pensar em Anita.
        - Luke... – Ginny gemeu, o rosto encostado no peito do primo. Estava tremendo convulsivamente, e não conseguia abraçá-lo. – Luke, eles...
        - O leite de Anita...
        - O quê? – ela ergueu seus olhos úmidos para ele. Luke fitava ao longe.
        - Diga a mamãe que eu vou voltar ao mercado, esqueci o leite.
        - Do que você está falando, Luke?
        - Do leite, Ginny, você não entendeu? Eu fui até os bombeiros para comprar leite para Anita, e eu esqueci. Mas já estarei de volta, peça a mamãe para...
        A mão da garota estalou aberta na bochecha esquerda de Luke.
        Seus olhos pareceram voltar ao foco novamente. O peito do rapaz tremeu violentamente, em sua tentativa de conter um soluço alto, que resultou em algumas lágrimas se acumulando em seus olhos.
        Não caíram naquele momento.
        - Ginny, Luke...
        Os dois viraram a cabeça rapidamente, e viram um Daniel Cowman se afastando da casa, em direção a eles. Tinha o uniforme anti-chamas sujo de carvão, e trazia em suas mãos um urso de pelúcia cor-de-rosa. Semi-intacto.
Era o urso com o qual Anita dormira abraçada. Sr Bigodes, como ela resolvera chamá-lo, havia sido designado como seu guardião naquela noite. Luke havia deixado aquele maldito urso tomando conta dela, enquanto ele apenas ia comprar o leite, e o fogo a havia consumido. Mas Sr Bigodes estava apenas com algumas partes chamuscadas.
        Apenas isto.
        E Anita? O que restara dela, se é que restara?
        - A-anita? – a boca de Luke tremeu ao falar – Anita!
        - Luke... – a voz de Ginny mais parecia uma estação de rádio mal-sintonizada, em contraste com as sirenes que ecoavam pelas ruas, somadas com o burburinho das pessoas, que se acumulavam cada vez mais – Anita se foi...
        - Não, não, não, não, não! – ele gritou, se desvencilhando dos braços da prima. Bateu com seu braço direito no peito de Daniel, e viu que ele estava se segurando para não chorar. Também conhecera Anita, também a amara.
        Pensar nela, utilizando os verbos no passado, estava se tornando doloroso para Luke, de um modo quase que físico. Sem olhar duas vezes para Daniel, a seu lado com roupa de bombeiro, ou para sua prima, do outro lado, o rapaz começou a correr.
        Foi quando Luke viu algo que o perturbou tanto, que fez com que ele parasse de súbito, caindo prostrado diante do que fora algum dia sua casa. Diante do que seria sua casa novamente, daí a alguns anos.
        Ele sequer sentiu suas mãos batendo contra o asfalto, sequer notou que o joelho direito de sua calça jeans havia rasgado, e sequer sentiu quando o sangue começou a fluir de seu joelho direito. Tinha os olhos fixos em algo – Alguém – diante de si.
        Foi quando Luke deletou este momento de sua mente. Forçou-se a esquecer o que havia visto para sempre, não importasse o quê tentasse fazê-lo lembrar.
        Para sempre durou seis anos.

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